Você é uma das pessoas que se pergunta se a medicina chinesa tem alguma relação com o taoismo? E, se responde que sim, sabe qual seria essa relação? É isto que pretendo responder nesta postagem.
Medicina chinesa, religião e espiritualidade
Será que a medicina chinesa é uma religião ou uma prática espiritual? Obviamente não. Na verdade, ela é um saber médico tradicional. Quer dizer, um conhecimento sobre saúde e doença. Por isso, não é preciso ser religioso ou ter um caminho espiritual para praticar medicina chinesa. Basta ter uma formação adequada na sua teoria e prática. E, para ser paciente dela, basta querer receber seus cuidados de saúde. Não é importante se você é religioso ou ateu, o efeito da medicina chinesa será o mesmo.
Por outro lado, historicamente, na China, houve monges taoistas e budistas que aprenderam e praticaram medicina. Isso fez parte de sua formação e de suas atividades em benefício da comunidade. Saber medicina chinesa é um ofício, um meio de ganhar o próprio sustento. E também é uma oportunidade para servir aos demais e aliviar seu sofrimento.
Em particular, como o taoismo é nativo da China, em certos contextos e momentos históricos houve um importante intercâmbio com a medicina chinesa. Explicarei isso, daqui a pouco.
E o taoismo, é uma religião?
O taoismo é uma religião? Sim e não, depende do que definimos como taoismo e como religião. Em primeiro lugar, o próprio conceito de religião é um tanto problemático para caracterizar as espiritualidades tradicionais asiáticas porque foi elaborado por estudiosos ocidentais que tinham como modelo as instituições, símbolos e práticas das religiões monoteístas.
Por um lado, uma estudiosa importante como Robinet (1997) afirma que a oposição entre taoismo filosófico e religioso foi uma invenção ocidental. Outra autora relevante, Kohn (2001), define taoismo como a religião originária da China antiga. Mas mesmo assim, também é preciso diferenciar o taoismo da religião popular chinesa, que se relacionam, mas não se confundem, como explicou Schipper, (1993).
Por outro lado, meu primeiro mestre taoista, Liu Pailin, enfatizou que seus ensinamentos representavam “a essência da civilização chinesa” e que “não tinham nenhuma conotação religiosa”. Ele não ensinou um taoismo sacerdotal, de divindades, templos e rituais. Em vez disso, sua linhagem combinava três pilares: medicina (yī 醫), arte marcial (quán 拳) e o caminho da iluminação (xiān 仙). E falava de uma espiritualidade que emerge da apreciação dos segredos da natureza e que se manifesta como nosso potencial inato de conexão com o Tao, o estado natural. De modo semelhante, a linhagem taoista Kunlun Xianzong (kūnlún xiānzōng 崑崙仙宗 ), de que sou discípulo, define-se como prática do Tao (dàogōng 道功) e não como religião taoista (dàojiào 道教).
Relações entre medicina chinesa e taoismo
Então, qual a relação entre medicina chinesa e taoismo? De fato, são vários os pontos de conexão. Taoismo e medicina são dois campos distintos, mas que tiveram trocas frutíferas.
Em primeiro lugar, a filosofia que informa a compreensão médica da natureza, do corpo humano e da própria vida é de base taoista. A natureza é vista como um fluxo de alternâncias e combinações de Yin e Yang e do Qi dos Cinco Movimentos. O corpo humano é entendido como um pequeno universo, regido e formado pelas mesmas forças que a grande natureza.
Como vimos, os fundamentos da medicina chinesa são os mesmos de todos conhecimentos tradicionais chineses: a filosofia Yin e Yang e a teoria dos Cinco Movimentos. Assim, a cosmologia taoista oferece a linguagem para os fundamentos da medicina chinesa. Os ciclos naturais, os processos fisiológicos, a saúde e a doença, tudo isto é descrito com o simbolismo de Yin e Yang e dos Cinco Movimentos.
Outro ponto é que as práticas taoistas de longevidade, como os exercícios de meditação, Daoyin e Qigong, foram incorporadas ao repertório da medicina chinesa, como prevenção e tratamento.
Além disso, as pesquisas da alquimia taoista também descobriram algumas substâncias consideradas remédios superiores que favorecem a longevidade. Posteriormente, foram incorporadas à farmacopeia chinesa, como o cogumelo Lingzhi (靈芝 língzhī, nome científico, Ganoderma lucidum) , a raiz Huangqi (黃耆 huángqí, nome científico, Astragalus membranaceus), a famosa fruta gojiberry (枸杞子 gǒuqǐzǐ, nome científico, Lycium barbarum), entre outros.
Paralelamente, o conhecimento médico informou o desenvolvimento das práticas taoistas. A elaboração dos exercícios para longevidade, das técnicas de alquimia interior, entre outras, beneficiou-se bastante do conhecimento médico. De fato, muitos exercícios de Qigong populares hoje em dia, como a série do Baduanjin (八段錦 bāduànjīn), demonstram que seus criadores possuíam uma compreensão profunda da medicina chinesa.
Para concluir: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Mas isso não quer dizer que quem pratica medicina chinesa seja taoista. Como disse antes, a medicina chinesa é um conhecimento médico tradicional, voltado para nutrir e prolongar a vida, independente de religião ou espiritualidade.
E, além disso, nem toda pessoa que se considera taoista é especialista em medicina chinesa. Nas linhagens que pratico, este é um estudo considerado importante. Juntamente com outras artes tradicionais. Mas o que define ser taoista é receber os ensinamentos sobre um caminho de vida voltado realização do estado natural, o Tao. E reconhecer em Laozi (老子) o primeiro mestre do Tao.